A  HISTÓRIA DA FALA

 

OFICINA TEÓRICA, bem-vindo! Texto experimental 3, rascunho em 22.02.2008

PROJETO DE ESTUDOS AVANÇADOS DA LINGUAGEM

Uma Pequena Conferência

O objeto de estudo da História da Fala

Nota: faz-se uma observação inicial, de que se procurou destacar os termos-chave do estudo colocando-os em negrito, itálico e cor mais clara.

2. Os parágrafos estão numerados apenas para facilitar a leitura na tela do computador

1. Introdução: o trâmite acadêmico e a singularidade disciplinar

1. A criação de uma nova disciplina acadêmica está sempre sujeita ao rigoroso exame de seu referencial teórico, e este deve designar um objeto de estudo próprio e distinto dos que já foram determinados em outros campos, áreas e matérias. Esta prova a que devem se submeter constantemente as disciplinas de pesquisa científica são constituídas por duas faces complementares: uma delas é a prova empírica, aquela que estamos habituados a ouvir como sendo as experiências, os experimentos científicos; a outra face é a constituição simbólica do estudo. Sua sistematização, seus métodos, critérios, valores, conceitos, princípios, variáveis, enfim, toda uma série de códigos, fórmulas, enunciados, que sintetizam o trabalho científico e o apresentam à comunidade científica, para que se estabeleça uma disciplina. Apesar de esquematicamente dissociados aqui, o empírico e simbólico devem atuar de modo integrado nas atividades de pesquisa. Uma nova área de estudo somente é tida como válida se, depois de submetida a várias provas, for incorporada pelo conjunto de estudiosos que cuidam dessa matéria, de forma ampla mas quase nunca unânime. Os relatórios precisam ser aprovados por orientadores e examinadores de bancas acadêmicas, depois apresentações devem ser levadas aos congressos científicos, onde os resultados e as dissertações publicadas serão cuidadosamente averiguados e comentados, pelos mais renomados pesquisadores que estejam em contato direto com as novas proposições. Não apenas para estabelecer sua consistência e validade, mas também para constatar se aquele estudo é mesmo inovador, se deve ser objeto de uma nova disciplina. Não é um fato corriqueiro o reconhecimento de um novo campo de estudo. Certamente uma proposta dessas demandou anos de pesquisa, e pode levar muitos anos até que esse novo conhecimento seja parte integrante do conhecimento formal, acrescentado às matérias que os novos estudantes devam conhecer. Às vezes esses procedimentos podem ser abreviados, desde que o convencimento da comunidade científica se dê em menos tempo.

2. No caso de uma História da Fala, como esta poderia se enquadrar nas especificações exigidas pelos outros pesquisadores e grupos de pesquisa? Obviamente, este projeto disciplinar terá de se submeter à confrontação, superar todas as fases brevemente citadas, e ainda outras que surgem no caminho particular de cada estudo. Contudo, previamente os proponentes da disciplina devem eles mesmos se certificar de algumas premissas fundamentais. Neste caso, isto se aplica a realizar uma pequena exploração epistemológica, isto é, saber se essa disciplina realmente não existe. Ao que nos consta, ainda não há uma História da Fala oferecida nos cursos de graduação e pós-graduação. Já é um bom começo. Em seguida, deve-se elaborar a argumentação, verificar se essas formulações prévias estabelecem um objeto singular, mas já de acordo com estudos realizados. Nesta fase se inicia a composição da disciplina propriamente dita, e é onde se encontram os grandes desafios teóricos e as maiores dificuldades formais. Além de organizar essas primeiras referências disciplinares, é preciso adotar um plano de divulgação do trabalho científico, traçar uma rota de formalização gradativa dos estudos, pois durante a trajetória fundadora será necessário obter o parecer de alguns pesquisadores mais graduados, formando assim uma espécie de aliança acadêmica, uma pequena comunidade incubadora, capaz de levar o projeto disciplinar ao seu reconhecimento.

3. Este é apenas um pequeno texto de divulgação, portanto não deverá constar desta forma de publicação eletrônica informal todo o procedimento técnico-acadêmico (o rigor do método). Serão lançadas apenas algumas coordenadas de mapeamento disciplinar, para divulgar os estudos e também para satisfazer a curiosidade dos leitores do blog e de outros pesquisadores.


 

2. A Tese Disciplinar : a elaboração do Projeto (saber sistemático) e o saber intuitivo - o direcionamento do conhecimento prévio do mundo pela metodologia científica

1. O primeiro olhar da História da Fala, seu horizonte inicial, o cenário mais amplo, a observação geral de sistematização, sustenta que todos os fatos históricos concretos, todos os dados reais que se possam perceber ou colecionar, todas as situações que vemos ou vivemos, têm como componente processual e sistêmico obrigatório e inalienável um texto. Não um texto teórico, apenas, mas um texto real, que se funde com as coisas do mundo, incluídas as nossas consciências individuais. Estamos indo ao lado Bakhtin e junto com ele, mas espero que seja possível discernir algumas abordagens dessa mesma substância, de núcleos distintos que poderiam indicar objetos de disciplinas diferentes. A sensação de pesquisa nesse momento é mais ou menos o que sentiria um astrônomo, ao notar uma sombra desconhecida na imagem telescópica. Poderia ser aquele um novo corpo celeste? Esta é a hipótese do presente estudo: a de que o estudo da produção discursiva da realidade daria origem a pelo menos mais essa disciplina, a História da Fala. E isto é proposto como sendo um núcleo diverso das outras disciplinas das áreas da Linguagem, que cuidam de pesquisar os "processos lingüísticos e discursivos em si", voltando-se para as estruturas e sistemas lingüísticos, ou para seus aspectos semióticos e ideológicos (o dialogismo propriamente dito), enquanto o novo plano disciplinar cuida da "produção em si", do envolvimento da linguagem com os campos exteriores do conhecimento, o campo interdisciplinar, mas naquilo que produz realidades, situações do real, em suma, historicidade. Seriam, deste modo, os desenlaces materiais da historicidade lingüístico-discursiva, envolvida diretamente nos acontecimentos do mundo, traduzida e desdobrada em fatos.


 

3. A Formação Semiótica do Homem e de suas culturas - a consciência e a sociedade formando-se pelas interações verbais.

3.1. Vamos aprofundar as noções dessa essência textual (discursiva) formadora de toda realidade material,de modo simultâneo, ou seja, ao mesmo tempo a atividade dialógica é instrumento de comunicação e parte integrante das coisas reais (a ubiqüidade bakhtiniana ubiqüidade bakhtiniana). Note-se que já é preciso delimitar o estudo. Só faz sentido organizar tal conhecimento se o pressuposto dele for a observação humana, ou seja, é um referencial aplicável somente a seres de linguagem, constituídos pela linguagem e produtores de linguagem. Para estes seres, os únicos que conhecemos até agora são os humanos, é que mesmo a realidade mais instintiva e sensorial só pode ser percebida, após a conquista da palavra, através de uma mediação verbal. Chegamos lá, calma. Isto de se afirmar que a natureza puramente objetiva é inconcebível para a inteligência humana já foi dito por outros autores, desde Platão, até Kant, quando dizem ser intangível a natureza por si mesma, e portanto construímos espécies de meios e de objetos para nos apropriar do mundo físico e de tudo mais, à nossa volta ou em nosso interior. Em outras palavras, o objetivo está dentro do texto, e não seria possível qualquer dado "real"  na ausência das palavras, ou como diria Bakhtin, sem estar "banhado em palavras".

3.2. Esses textos que se propõe sejam os determinantes dos fatos, situações e objetos da realidade percebida por nós, não são textos comuns, impressos ou concluídos. Não são estanques. São textos dialógicos e discursivos, isto é, estão em movimento no Cosmos, estão transformando o mundo, estão em circulação, em debate, em interação com tudo mais o que existe, como se tudo fosse interdependente. E não é assim que se constitui a imensa rede da realidade? Newton e Einstein viam esse todo infinito como "Universo"; Italo Calvino via como "rede dos possíveis". São palavras, então, como elétrons e partículas de um átomo, cuja posição não se consegue determinar precisamente, como em Heisenberg. São mesmo em si uma ambigüidade, segundo confirmam as pesquisas mais recentes, segundo as quais as menores partículas detectáveis têm comportamento dual: podem se comportar ora como partícula, ora como luz. Os sentidos das palavras guardam certa analogia com o universo físico, e estabelecem também certa identidade com elas, pois as palavras como som ou como signo, não existem fora do mundo. Depois veremos isto também. A palavra é o signo por excelência e em mais alto grau de elaboração, e o signo (o material semiótico-ideológico) é a chava da representação e da compreensão do universo, para o ser falante e consciente.

3.3. Além desse complexo universo dialógico, outra propriedade desse "texto" determinante é o de constituir uma história, uma trajetória, uma rede de diálogos, cujas resultantes podem ser observadas, transmitidas, compreendidas em cada um de seus momentos. Não foi sempre o mesmo texto, portanto. Quer dizer, além de ter sentidos variáveis, esse texto tem um retrato perceptível diferente em cada momento, mas continua a ser o texto em perspectiva de uma realidade observada. Até aí, já complicou tudo, não? Mas vamos em frente. O estudo da dialogia por Bakhtin permitiu que estudássemos a linguagem sem congelá-la ou tirar sua livre movimentação, sua vida. Não estudamos mais palavras paradas ou depositadas em algum lugar, mas sim o discurso vivo nas situações da sociedade é que dá a significação de todo o sistema lingüístico. Isto quer dizer que a fala assumiu um papel muito importante nos estudos da linguagem. Não era assim. Antes se estudavam os sons, a gramática, a morfologia, a semântica, mas pouco se sabia sobre o momento vivo do discurso, a fala. Esta era incompreensível para as lentes científicas da época dos primeiros estudos sistemáticos da linguagem, como disciplina acadêmica, feitos por Ferdinand de Saussure, lingüista suíço pioneiro da Lingüistica, autor da obra fundadora dos estudos contemporâneos da Linguagem, o Curso de Lingüística Geral. Mas não é dessas abordagens iniciais que falamos, embora esses estudos estejam incorporados ao desenvolvimento posterior da Ciência, de forma crítica e fundamental.

3.4. Falamos de um texto como o que foi estudado por Bakhtin, este que está em circulação infinita pelas vozes, permitindo o diálogo e criando a linguagem como ato per se, isto é, a linguagem é criada no mesmo instante em que se pronuncia as palavras, como se existisse desde sempre (o sistema lingüístico ou sincronia, segundo Saussure). Ela é ao mesmo tempo instantânea e infinita, ou seja, vem do infinito anterior e se projeta no infinito posterior (o eixo diacrônico, apenas parcialmente estudado antes do dialogismo, como na Gramática Histórica). Depois de Bakhtin, a palavra tornou-se materialmente eterna. Foi esta qualidade da produção verbal, aliás, uma das primeiras características inovadoras de Bakhtin, ao estudar o dialogismo: ele notou no universo lingüístico as mesmas dimensões do universo físico de Einstein, e desenvolveu essa idéia, sistematizando-a através do conceito de "cronotopo", conceito derivado da continuidade espaço-temporal einsteiniana. Para os humanos, em última instância, para que o ser humano possa compreender o universo e a vida, é quase como se o universo e a vida tivessem de falar com ele. Há de fato um diálogo dos homens com tudo que percebem, esta é a essência da linguagem, o modo como os indivíduos humanos passam a integrar o mundo, a fazer parte do mundo, esta é sua existência, uma passagem que é construída também por palavras. Os tempos verbais, por exemplo, ou a história de um povo. Quando os tempos narrativos recuam e resgatam acontecimentos passados, a representação lingüística também está recuando no espaço-tempo, e viaja no tempo, atrás das memórias com que se escrevem as histórias. Agora embolou tudo? Mais um pouquinho adiante..

3.5. A essa outra característica, de tudo ter de se traduzir em palavras, passar por linguagem, por "significação", antes de ser percebida pela consciência humana, o jovem e genial estudioso russo denominou de "ubiqüidade da palavra", ou seja, a propriedade das palavras estarem em todos os lugares, no mundo dos homens. É dessa ubiqüidade da palavra que se desmembram os primeiros esboços da nova disciplina. Mas antes é preciso chamar a atenção, mais uma vez, para outra conseqüência das descobertas sobre a palavra, feitas por Bakhtin: o próprio material semiótico, matéria-prima da consciência, nasce da interação verbal, e a semiótica nasce de modo inseparável à apreciação ideológica, os nossos valores ideológicos (não quer dizer aqui ideologia como sistema doutrinário, mas como estabelecimento de valores e escalas de valores), a distinção entre as coisas, quer dizer, não há na vida humana, após o desenvolvimento da fala, nada que seja anterior ou posterior à palavra. O próprio organismo passa a ser regido e também a reagir integrado aos laços verbais da formação social humana, nas trajetórias de cada um. 

3.6. Bakhtin chega mesmo à raiz de tudo, na investigação científica pré-dialogia, quando diz que um fisiologista não deveria estudar o corpo humano, para entender a fala, mas deveria sim estudar a fala, para compreender o organismo humano. Nessa breve afirmação, Bakhtin aponta para outro aspecto fundamental do conhecimento. Sob a ótica dialógica, o corpo humano traz certo coeficiente de suas características formadas por causa e conseqüência do desenvolvimento da linguagem verbal, e nisso ele certamente incluía o aparelho fonador desenvolvido, como alteração genética de adaptação. E o mais importante, a capacidade cerebral desenvolvida nos humanos é reflexo direto da atividade lingüística. Isto não é muito difícil de conceber, hoje em dia, quando se examina toda a história do homem e se percebe que não há nenhuma outra atividade que pudesse conferir ou justificar tamanha complexidade cerebral, que não fosse a fala. Este é o instrumento de trabalho proporcional ao nível de complexidade a que chegou o cérebro, no Hommo Sapiens Sapiens.  No plano mais profundo da teoria dialógica, localiza-se, desta forma, uma tese segundo a qual a história da fala se confundiria com a história evolutiva humana, e isto se estende à história das organizações humanas, de suas culturas e de seus indivíduos, em qualquer época ou lugar do planeta, desde as épocas mais remotas até os dias de hoje. Esta é dimensão mais ampla da ubiqüidade. Até aqui está tudo confuso, ou não? Mas vamos em frente.

3.7. O estudo da fala como objeto característico, segundo a argumentação apresentada, reveste-se de significados muito especiais, pois os vestígios da fala levariam aos vestígios remotos da humanização do "bicho homem", o primata "elo perdido", que não falava, mas talvez já utilizasse os sons de maneira distinta de outras espécies, em suas formas de convivência e de comunicação. E escrever essa história da fala também permitiria compreender melhor o ser humano, em alguns aspectos que talvez ainda não sejam tão claros, especialmente aqueles concernentes a sua vida social. Além disso, o referencial teórico bem aplicado e experimentado nos prismas da matéria poderia fornecer instrumentos de análise até hoje impossíveis de serem feitas de modo sistemático. E aqui retornamos às abordagens iniciais: há um texto sustentado todos os fatos e situações da realidade que nos cerca, e nós estamos incluídos nessa rede lingüística. Mais adiante iremos comentar o texto de Frederich Engels, sobre a Importância do Trabalho na evolução do macaco em Homem. Texto de grande valor científico, em parte já está datado, em parte permanece atualíssimo, se deduzida dele a parte doutrinária, e que fornece uma boa base de argumentação dialógica para a nova disciplina.

3.8. Exemplos práticos: dentro de uma grande empresa abre-se uma crise. Há vários modos de resolvê-la, e é consenso que a conversa é o instrumento mais importante para resolver tudo. No caso de uma análise sistemática, dialógica da questão, entretanto, seria possível encontrar nos jogos de palavras os valores atuantes, o peso dos diversos fatores, o modo como se formam, se confrontam e se expandem dentro do conjunto de problemas. Seria possível resolver essa crise contando com um número bem maior de variáveis e alternativas, pois outros valores seriam encontrados nas fronteiras dos problemas, quando tudo se complica, a não ser o discurso. Então provavelmente se encontrariam pessoas descontentes pelos mais diversos motivos, e cada um desses motivos se tornaria bem mais nítido, expresso, como se tivessem sido escritos em um papel, este é o poder que dá o estudo da significação. E a partir daí a empresa poderia reavaliar uma série de procedimentos e de contextos. Mas isto não é feito desde os CCQ's, desde os programas de qualidade, ou desde as formas de gestão pelo conhecimento? Sim, é, mas de modo parcial, quer dizer, o processo seria mais completo se um analista de discurso bem preparado participasse desse processo, e pudesse examinar o que cada um, cada setor ou responsável, "disse", ou está dizendo, e soubesse contrapor a esse discurso as bases da administração da empresa e as suas metas estratégicas, isto é, ele encontraria os "ecos", as réplicas e tréplicas das propostas produtivas que circulam nessa empresa. Certamente haveria informações novas, somando-se às outras. Mas esta foi uma pequena amostra. Existem também situações domésticas, da vida pessoal, questões gerais da sociedade, problemas de foro íntimo, e todas essas questões podem ser mais bem equacionadas se vistas de modo mais "textualizado" e "tematizado". Isto já fazem as análises psicológicas, as conversas de botequim, as diversas formas de bate-papo, mas não se deve esquecer que há níveis profundos na linguagem cotidiana, e eles ocorrem junto com o dizer mais superficial, nos diálogos. É isso que estudaram Michel Pecheux e Mkhail Bakhtin, os dois estudiosos que deram as maiores contribuições para a constituição da análise discursiva.

3.9. A História da Fala se destina a compor pesquisas interdisciplinares com a Arqueologia a Antropologia, para estudar melhor os impactos da fala no desenvolvimento humano, as várias "idades", da pedra, do metal, etc., mas não só com elas. No outro extremo, a pesquisa da inteligência artificial, das linguagens cibernéticas e de software para os mais diversos usos, fazem uso massivo dos conceitos atuais sobre a linguagem, e já se vê a linguagem não mais de modo "puro", à parte da substância de cada disciplina, mas sim integrante do estudo. Os termos de cada área, os sistemas de pensamento, os protocolos, as sintaxes, e o diálogo, as discussões específicas, as variantes técnicas de cada matéria, todo esse novo universo interdisciplinar precisou de uma sistematização inicial nas áreas da Linguagem, e quanto mais estas avançam, mas isto repercute em todas as outras disciplinas. Outras cooperações são esperadas, em todos os campos do conhecimento. 


 

4. A materialidade da palavra 

4.1 Em geral, o aspecto físico da palavra é visto como fonética ou como fonologia, isto é, dando sentido às emissões do aparelho fonador humano, transformando a articulação sonora em enunciações de um sistema lingüístico. Mas há outra face da palavra como entidade material, e esta é sua natureza energética e corpuscular, e neste caso a palavra é observável como produção material, como trabalho físico, com gasto de energia, seja ela produzida nos centros neurológicos ou em qualquer outra parte do corpo. Exemplo, um programa de rádio, um "outdoor", ou um livro. Para que aquelas palavras estejam ali, nos lugares indicados, foi preciso um dispêndio de várias formas energéticas, além do produto final, papel, tinta, cola, transporte, etc., ou seja, a palavra não é apenas uma coisa teórica, totalmente simbólica, etérea e intocável. Ela se substantifica, desde sua concepção, pois no cérebro ela é armazenada como impulso neurológico, possui certa carga de materialidade e energia, sempre. O próprio cérebro é ressignificado. Ele evoluiu falando e faz parte da palavra tanto quanto esta faz parte do organismo cerebral. O que não se sabia é como aproveitar esse aspecto concreto das palavras, sua exterioridade mais corporificada, nos estudos da linguagem. 

4.2. Esse estudo pode ser incorporado às pesquisas da linguagem se as palavras forem vistas como produção, como partes efetivas do mundo real, pois aí são apropriadas pelo trabalho humano e passam também a transformar as coisas e a se transformar nas coisas, em formas, produtos e organização. É assim que nasce a Semiótica e são constituídos os signos lingüísticos.. A palavra "piano", por exemplo, "está junto" do piano. Este não existiria sem a palavra piano, percebem? E a palavra "piano" não é apenas uma abstração de um objeto idealizado ou imaginário, ou um projeto de alguma coisa. Ela é fruto de um trabalho orgânico (cerebral) altamente complexo (intelectual), e esses quanta de energia são transmitidos concretamente pelo ar, através de ondas sonoras captadas por outros indivíduos, e entre eles se estabelece uma comunicação mensurável, material. Esses "comandos" orgânicos geram movimentações sociais cujo produto final é o piano, mas antes foi preciso conseguir a madeira, fazer o desenho, ter as ferramentas, etc. Então, a palavra esteve presente como intelecto e como materialidade durante todo esse processo, ainda que envolvendo níveis energéticos muito mais sutis do que cortar a madeira ou armar os teclados. Esse exemplo dá uma boa idéia do que seja a exterioridade da palavra em grau máximo, sua materialidade mais pronunciada. Na estudo dialógico não se deve desconsiderar esses aspectos também, ainda mais no mundo pós-industrial, repleto de multimeios, de formatos e de linguagens. São as mesmas palavras sendo transmitidas pelos satélites e pelas fibras óticas, compondo a programação dos mídia ou construindo os softwares.


 

5. Objetivos 

5.1. O objetivo central desta disciplina é estudar a construção da realidade pelos textos, e para tanto é peciso compreender a fala em dimensões dialógicas. Seu referencial teórico fundamental compõe-se pelas contribuições teóricas de Mikhail Bakthin, sem excluir outras contribuições que possam vir do campo lingüístico-discursivo. Bakhtin seria uma demarcação. Trata-se, desta forma, de uma nova disciplina, mas não de uma nova teoria, inicialmente. O próprio Bakhtin já trazia essa concepção em suas formulações, como se pode verificar nos Problemas da Poética de Dostoiévski, no capítulo reservado à análise das idéias, em que se refere ao "grande discurso" de uma época ou de uma obra, definindo-as como sendo as relações dialógicas que as sustentam.  

5.2. Desprender-se-iam, portanto, de acordo com esta proposta disciplinar, no corpo dos estudos da Linguagem, a Análise de Discurso e a História da Fala, sendo esta última uma aplicação da precedente, mas, enquanto uma trabalha no discurso como objeto, a outra estuda as exterioridades da fala, sua historicidade, a construção do mundo em conseqüência da comunicação verbal em sentido amplo, isto é, como gerador semiótico e ideológico. Haveria contudo a concorrência permanente das duas matérias, pois a fala também é "aspecto exterior" da própria fala, pode ser estudada tanto nos aspectos internos de seus sistemas quanto nas regiões interdisciplinares, participando de fenômenos que não seriam mais estritamente discursivos ou lingüísticos. Esse entrelaçamento, porém, é fato comum e característico da linguagem, que Foucault estudou como sendo a invasão de uma formação discursiva por outra, mas que ocorre não apenas entre tipos e gêneros discursivos, mas entre diferentes abordagens discursivas inclusive. A nova disciplina, portanto, não poderia ser objeto de um estudo específico do discurso, malgrado use o conhecimento discursivo como instrumento. Já há vários exemplos disso, como entre a Matemática e a Fisica, ou entre a Biologia e a Química. Vários campos se entrelaçam, e a Física realiza inúmeras operações matemáticas, todavia, no estudo de seus objetos e abordagens específicas; da mesma forma, a Biologia faz vários estudos químicos, situados no plano de um estudo biológico. 

5.3. O que poderia fazer a disciplina proposta, apenas a título de ilustração, ao estudar um fato histórico (poderia ser de outra natureza) como o Descobrimento do Brasil? Tentaria se aproximar tanto quanto possível dos diálogos efetivamente ocorridos, tentaria reconstruir os contextos discursivos, analisaria os valores encontrados como grandezas semióticas-ideológicas, e observaria as conseqüências materializadas nos acontecimentos, mas não apenas para estudar a linguagem, nem para estudar apenas esses acontecimentos, mas para tentar estabelecer as relações de interação entre os processos dialógicos e os históricos propriamente ditos, ou seja, as sínteses desses momentos vividos. Ressalva-se que nem a História ou a Análise de Discurso, como disciplinas estritas, poderiam se apropriar adequadamente dessas abordagens, embora o projeto de pesquisa não exclua nem lingüistas, nem analistas de discurso, nem historiadores ou especialistas de outras matérias.

5.4. Uma terceira ilustração, entre infinitas possibilidades. O estudo remoto dos grupamentos humanos, para estudar a própria fala e seus desenvolvimentos iniciais. Este, aliás, é exame constitutivo da disciplina. Qual teria sido o impacto do surgimento da fala na vida humana? Que hipóteses se podem construir sobre os primeiros ambientes verbais e verbalizados? Qual poderia sido a duração de cada etapa de constituição dos primeiros sistemas lingüísticos? Que hipóteses poderiam ser apresentadas? Como poderia ter sido o avanço gradual da comunicação verbal? Há vestígios disso na periodização histórica? Na Lingüística Histórica? Há evidências arqueológicas que possam, a partir da História da Fala, distinguir culturas "faladas" de culturas "não faladas"? Existem marcas das várias etapas da linguagem? Quais poderiam ser as diferenças de complexidade entre os primeiros sistemas fonológicos, as primeiras palavras, frases e um sistema lingüístico integral? 

5.5. Como se pode ver, há de fato campos novos que se abrem, sob as perspectivas únicas e exclusivas de uma História da Fala, sem esquecer que se trata esta nova matéria de uma organização multidisciplinar, por natureza, mas que deve se constituir de modo singular, para sistematizar seus planos de pesquisa. E, mais importante, ao fazer isso, seria capaz de produzir um arcabouço teórico próprio de seus programas e atividades. As resultantes desses estudos não seriam propriamente assuntos desconhecidos do meio científico-acadêmico atual, apesar de concentrarem um potencial inovador na análise sistemática. A grande novidade seria a qualidade de articulação dos conhecimentos reunidos, o grau de coesão a ser alcançado, apesar da multiplicidade de referências, a amplitude e a profundidade de observação que se abririam para diversos focos de análise.

5.6. Os impactos da fala sobre a humanização e a constituição da personalidade e da consciência nos indivíduos, ou das formas culturais e instituições sociais são tão integralmente extensos que não se poderia falar de ser humano e de história humana antes da comunicação verbal, e este é outro ponto disciplinar. Tanto quanto a escrita, a fala também divide a História em antes e depois de seu surgimento. Se há uma pré-história humana demarcada pelo escrever ou não escrever, há da mesma forma uma pré-história humana delimitada pelo diálogo formal, pelo falar ou não falar por meio de um sistema lingüístico organizados. E é conteúdo disciplinar da História da Fala a busca e reconstrução desses grandes períodos históricos, antes de depois do "verbo", assim como ela deve cuidar de propor hipóteses sobre os processos de transição de um mundo não falado para um mundo falado e "responsivo", em que o universo certamente se modificou, passando a ser um universo do diálogo.

5.7. Em seguida, a disciplina deve cuidar de tentar restabelecer como devem ter sido esses primeiros tempos dos sistemas lingüísticos, que modificações sociais poderiam ter ocorrido nos grupamentos nômades, após o advento dessa poderosíssima ferramenta. Será que haveria relação entre o desenvolvimento da língua e a sedentarização do homem, no período neolítico? Que modificação aconteceu na produção de ornamentos, moradias, objetos pessoais, instrumentos, relações com o meio ambiente? Há relação da fala com o domínio do fogo? E, no período anterior e certamente sonoro e também expressivo, mas gestual, que relação haveria entre a evolução lingüística e o desenvolvimento das habilidades manuais, da postura ereta, do aparelho fonador, E, em último grau, como se fez essa transmissão hereditária? Como se produziram as alterações genéticas? Como se processaram as informações sensoriais no organismo do homem e como foram incorporadas aos caracteres hereditários? Existe relação direta entre o comportamento e a transmissão genética? Ou são processos relacionados, mas totalmente independentes? Novamente se forma a rede interdisciplinar.

5.8. A investigação desses períodos históricos mais remotos precisa dialogar com outras teorias, como o evolucionismo de Darwin ou a concepção produtiva de Engels. Neste úlimo autor, já começamos a nos aproximar da linguagem como fator produtivo, como trabalho, e como teoria da produtção. Uma teoria geral das forças produtivas sempre foi incompleta, pois faltavam as bases dialógicas para sua formulação. Ao compreender o fenômeno da ressignificação, além da ubiqüidade da palavra, mais os outros aspectos discutidos neste texto, estão dadas as bases para se propor essa teoria geral da produção, e esse outro desmembramento também é conseqüência da sistematização de uma História da Fala.

 5.9. Concluindo esta parte da apresentação da matéria, vale uma observação discursiva. Como se deve proceder a um intenso e prolongado estudo das situações de diálogo, em várias épocas e culturas, pode-se acrescentar que, além de ser fortemente marcada pelo estudo interdisciplinar, a História da Fala tem características altamente polifônicas. Isto quer dizer que não seria possível efetuar ou conduzir estudos neste campo sem um domínio razoável da Lingüística e da Análise de Discurso. Da mesma forma, se outros campos cientificos não se associarem a esses dois primeiros, não se formaria a rede teórica da História da Fala, mas estaríamos ainda dentro de estudos específicos da linguagem.

 

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