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A HISTÓRIA DA FALA |
OFICINA TEÓRICA, bem-vindo! Texto experimental 2-1, rascunho em 29.04.2008 |
PROJETO DE ESTUDOS AVANÇADOS DA LINGUAGEM Uma Pequena Conferência CAPÍTULO 2 O surgimento dos cenários falados e a humanização Os parágrafos estão numerados apenas para facilitar a leitura na tela do
computador
1. Já tendo apresentado no texto introdutório a argumentação básica sobre os impactos do surgimento da fala entre os homens, sobre o papel central do diálogo na humanização da espécie, e a conseqüente ressignificação das culturas na comunidade falante e, portanto, responsiva, é preciso em seguida elaborar hipóteses e reconstituir as prováveis etapas de desenvolvimento histórico da linguagem verbal, nas sociedades de primatas humanóides. 2. Devemos recuar cerca de 3 a 5 milhões de anos no tempo, de acordo com as pesquisas mais recentes, e avançar desses primórdios até 5 mil anos atrás, para encontrar na pré-história as formas pré-discursivas e as dinâmicas culturais que serviram de base para as transformações genéticas e sociais inerentes à especialização dos primeiros gestos e expressões, criando ao longo de centenas de milhares de anos os sistemas lingüísticos e deste modo incorporando a linguagem verbal como característica e propriedade humana. Há nesse processo pelo menos duas fases de alterações genéticas: a primeira delas é parte do processo de verbalização da espécie, quando diversas características hereditárias são modificadas e vão-se adaptando ao hábito crescente de oralizar a comunicação e a expressão, ao mesmo tempo permitindo a emissão de sons cada vez mais complexos e aperfeiçoando o ato de fala; a segunda fase se dá na sociedade que já incorporou a palavra, mas o desenvolvimento do discurso ainda produz alterações genéticas fundamentais no organismo humano, destacando-se entre elas o aumento da capacidade cerebral. O cérebro já vinha evoluindo naturalmente, através da especialização das formas de trabalho nos grupos de primatas, porém, após a elaboração das primeiras palavras, e de sistemas lingüísticos rudimentares, formula-se aqui, seguindo a proposição de Bakhtin, a hipótese de que as alterações no cérebro humano se aceleraram e se intensificaram através do exercício lingüístico, por ser esta a forma mais avançada de trabalho cerebral concentrado, a única forma objetiva de atividade na natureza que estaria na proporção correta da atual capacidade do cérebro humano, que explicaria e justificaria essa história cerebral, para além da primeira fase de desenvolvimento. Não por si só, mas vinculando todas as outras atividades anteriormente desenvolvidas, e a novas funções surgidas nas comunidades falantes. 3.
Retornando ao cenário inicial proposto, reencontramos os primeiros grupos de
primatas vivendo talvez em uma região localizada do planeta, a África, como
mais uma espécie na comunidade dos mamíferos locais. Ou quem sabe já
espalhados pelo planeta, preferindo-se esta possibilidade, mesmo assim,
fixados em territórios ao seu alcance, sem fazer longas incursões e sem
vagarem em grupos nômades, sendo estas duas conquistas ulteriores ao período
considerado. Em seu habitat natural, a selva ou as cavernas, dependendo
da região onde estão, os primatas humanos adquirem novos hábitos e começam
a se diferenciar dos outros primatas, desenvolvendo muito lentamente, ao longo
de milênios, novas técnicas de trabalho. Mudanças que já vêm sendo
estudadas há mais de um século, pela Arqueologia e pela Paleontologia.
4.
Sem seguir ainda a ordem correta, pode-se relembrar os marcos principais desse
caminho. Em suas formas de interação ambiental e social, os primatas humanos
(ou o homem primitivo, como queiram) passam a usar as mãos com maior
freqüência e assumem a postura ereta, tornando-se bípedes. Colhem frutos,
encontram formas de quebrar cascas, elaboram os primeiros instrumentos,
desenvolvem formas de caça e de defesa, ampliam os gêneros de sua alimentação,
adquirem maior capacidade de defender seu território e de explorar outros,
fazem experiências com a natureza diferenciada da vegetação, procuram
imitar os hábitos de outras espécies, tornando-se também carnívoros, começam
a usar as peles dos animais abatidos, cunham armas e instrumentos nos ossos de
suas presas, passam a esculpir as rochas, encontram pigmentos para tingir e
pintar o corpo, os objetos e suas moradias, aprendem a controlar o fogo, e
aqui se desencadeia uma enorme fase evolutiva, multiplicando e projetando em
escala infinita as antigas experiências. Começam a fazer canoas talhadas nos
troncos das árvores, aperfeiçoam os trabalhos com a madeira, trabalham em
metais, começam a construir pequenas habitações, diques, os utensílios se
tornam mais numerosos e aperfeiçoados, passam a conhecer melhor as
propriedades das plantas, experimentam os primeiros cultivos, de forma ainda
desorganizada e informal, as vestes se especializam, surgem as costuras e
amarrações, os encaixes e modelagens, tornaram-se nômades mas agora já
começam a se sedentarizar, os territórios conhecidos expandiram-se, os
alimentos se diversificaram, mesmo assim a fome e a sede são preocupações
constantes, entre todas as questões da subsistência diária, mas as populações
aumentam, formam-se as primeiras tribos e nações, a produção se
diversifica e a divisão do trabalho se aprofunda. As operações mentais
tornam-se cada vez mais complexas e intensas, a massa encefálica aumenta, as
terminações nervosas se multiplicam sem parar, de geração em geração, ao
longo dos milênios. Em dado momento, o homem torna-se consciente da própria
existência e de sua inserção social, de si e dos outros, das identidades
individuais, grupais e coletivas, passa a falar correntemente e a traduzir
tudo em palavras. Os dados colhidos pelos sentidos são agora recebidos e
significados pela linguagem. A visão deixa de ser um mero “monitor” e
passa a estar também conectada aos processos da linguagem verbal, da mesma
forma que o tato, o olfato, o paladar, a audição e todos os sentidos do próprio
corpo, assim como os impulsos instintivos e as experimentações psicológicas.
Sentimentos e emoções fazem parte agora de cenários muito mais elaborados,
pequenas tendências e motivações tornaram-se poderosas correntes psíquicas,
e estas passam a interagir com o funcionamento fisiológico do organismo,
gerando fenômenos somáticos cada vez mais pronunciados. A atividade psíquica
volta-se para o imediato da identidade individual e da realidade objetiva
local, mas novas camadas de percepção sobrepõem-se ao alcance existencial
humano, pois a linguagem abre perspectivas quase infinitas de significação.
Tudo passa a ter seu nome (substantivos) e suas qualidades (adjetivos),
e entre as coisas desenvolvem-se diversas operações naturais e culturais (verbos),
diversas relações e sentidos lógicos formam-se nas frases (dêiticos,
declinações, pronomes, preposições, conjunções, advérbios), e com
elas novas formas de questionar, de raciocinar e de responder, e assim surgem
novas ideologias, religiões, filosofias e conhecimento, começando pelas
formas de transmissão oral das tradições, a memória histórica, as técnicas
e informações diversas, provocando o surgimento de culturas cada vez mais
complexas, até que dois novos grandes acontecimentos sucedem a evolução
inicial da espécie e ao surgimento da fala: nascem a escrita e o Estado na
Antigüidade, encerrando a era pré-histórica.
5.
Mas o fio condutor de todas essas aventuras, a grande ferramenta da humanidade
em todas essas etapas, e também o grande veículo, a matéria-prima dessa
marcha evolutiva, o núcleo de todos esses grandes acontecimentos, foi a
construção da própria fala, a história do diálogo, o trabalho básico de
humanização, transcendendo a condição meramente animal, apropriando-se do
mundo da razão, do sentimento consciente e dos valores, da construção de
sistemas e modos de produção, motivados pelo esforço humano em fugir da
solidão, do isolamento, de sua precariedade, insignificância e desproteção
perante o mundo. De seu desconcerto e perplexidade, de um lado, mas, de outro,
motivado pelo encanto, pela autoconfiança crescente, pelos estímulos da
convivência com os semelhantes, pela curiosidade e pelo desejo de aprender,
movido, em última instância, pela necessidade de progredir e realizar-se,
enfrentando os desafios e dificuldades. Noções
estas que afloram da própria reflexão verbalizada, e que não seriam possíveis
de outra forma, no grau em que passam a ocorrer.
6.
Quando estudamos a História da Fala hoje, estamos em vantagem em relação a
todos os tempos remotos, pois conhecemos os desenlaces de todas as tramas que
já ocorreram, sabemos a que lugares a história dos diálogos nos trouxe, então
podemos ser mais objetivos, já que todas as linhas argumentativas, todas as
deduções, todos os princípios e leis formulados, não têm mais como se
desviar e dispersar, mas deverão encontrar o dia de hoje. E todas as hipóteses
deverão passar pelas etapas que a Ciência já desvendou, mesmo que seja para
contestá-las. Retomemos, então, o ambiente de nossos ancestrais
7.
Em algum ponto da evolução humana os nossos ancestrais fizeram uma segunda
opção fundamental, em suas relações com o ambiente natural, além de
desenvolverem a habilidade manual e adquirirem a postura ereta (inter-relacionadas).
A espécie toda, toda a classe homo desenvolveu formas e gestos mais
intensos de expressão e comunicação, através dos sons produzidos por seu
aparelho fonador. No entanto, não foi uma “escolha” consciente, mas
conseqüência em grande parte do estágio evolutivo anterior, o bipedismo e a
habilidade manual, que serviram de base biológica e existencial para
provocarem o aumento de percepção, de sentidos dos sons, e as transformações
genéticas que especializaram as cordas vocais humanas. Não se pode,
entretanto, desconsiderar todo um conjunto de fatores correlatos. Há sem dúvida
a concorrência afetiva, fazendo com que a oralidade manifesta passasse a
representar diversas formas de interação social, soando como formas iniciais
de linguagem diferenciada. Houve indubitavelmente um interesse coletivo pela
verbalização, comum a diversos grupos humanos que não mantinham qualquer
contato entre si. A isto se deve inegavelmente a hereditariedade genética,
outro fator, associada a tendências mais fortes, portanto centrais, de evolução
biológica e social. Poder-se-ia conjeturar se todas as outras espécies de
animais superiores não tentaram igualmente “falar”, pois esta seria uma
linha evolutiva principal, mas nenhuma outra espécie teria seguido todos os
“passos” evolutivos necessários à fala. Não é questão de
superioridade ou inferioridade, no final das contas, mas apenas diferenciação
entre as espécies, mas é fato que todas as espécies domesticadas ou de
largo convívio com os humanos, procuram incorporar as palavras e parecem
atraídos por elas, mesmo não podendo reproduzi-las, nem compreender seu
sistema.
8.
O fato evolutivo a ser observado neste caso é que, após centenas de milhares
de anos de preparação e de elaboração constante, os sistemas lingüísticos,
acompanhados pelo desenvolvimento cerebral e pela evolução cultural,
passaram a dominar a “criatura”, e a fera cedeu boa parte de sua posição
à nova natureza humanizada. Junto com a palavra, transformaram-se todas as
formas de vida dos primatas, sem contudo, isto é essencial, erradicar a
origem animal dos homens. A criatura é parte do ser humano, e a fera nem
adormecida está, mas precisa do diálogo constante para sublimar seus
instintos e aprender a viver segundo os padrões da sociedade civilizada. Para
isso, estabeleceram-se as mais variadas formações discursivas, seus gêneros,
variedades, protocolos e características específicas. É a progressão dos
discursos que passou a dar o suporte básico para o desenvolvimento de novas
habilidades humanas, tanto as biológicas, que podemos desconhecer
completamente, já que se tornam perceptíveis apenas em grandes intervalos de
tempo (milhares de anos), quanto as culturais, e nisso se incluem o
progresso técnico-científico e o aumento de complexidade das culturas. Os
passos que se deram inicialmente pelos gestos do próprio corpo agora se
tornaram efeitos da linguagem, e o próprio corpo passa a ser concebido apenas
dentro da linguagem, ou seja, tudo passa a ser perceptível apenas pelos níveis
mais superficiais de consciência, e esta é semiótica e ideológica, ou
seja, nasce da interação social verbalizada.
9.
Na introdução já tínhamos proposto que o florescimento da consciência
humana na pesquisa arqueológica está provavelmente demarcado pelo momento em
que a elaboração de ferramentas diferenciadas pelo homem primitivo deixa de
apenas cuidar das tarefas “externas” e objetivas, voltadas “para
fora”, nas relações com o ambiente exterior, e passa o homem ancestral
a pintar o próprio corpo e a usar ornamentos em si próprio (*
ver nota no final do parágrafo).
Este é o ponto de ruptura, o despontar da consciência individual no
seio de sua comunidade organizada. Quando começa a confeccionar objetos
“para si” e a identificar seu próprio corpo por significados
diferenciados, o homem dá a prova de seu próprio reconhecimento, de enxergar
seus reflexos no mundo e notar os contornos de sua própria vida, através dos
valores culturais de seu grupo. E o faz pelo gesto individual da identificação
pictórica, um símbolo que precisa obrigatoriamente ser acompanhado por
outras distinções, os primeiros estágios lingüísticos e formas de
organização social que já estão além da herança natural dos primatas, em
que se desenrolavam jogos simples de acasalamento, de dominância grupal e de
pura subsistência, estando todos esses comportamentos associados ao universo
primordial da adaptação, da sobrevivência do mais apto. Aqui já há outras
aptidões a serem consideradas, novos instrumentos e ardis sendo usados,
alterando-se os valores dessa adaptação de subsistência e os jogos políticos
e sexuais-amorosos, formando-se o tabu do incesto e os totens familiares. Já
há certo grau de conhecimento articulando as forças sociais.
NOTA: Na verdade, esta argumentação foi feita no artigo n. 6 da série Teoria Geral das Forças Produtivas, do blog: A criação do sujeito pelo diálogo 10.
O segundo sinal demarcando o nascimento da consciência humana, além da
identificação por ornamentos (e pelas vestes de cada um) e também
pelos artefatos de cada indivíduo ou família, é a marca feita na própria
linguagem. O ato de identificar-se está logicamente associado à capacidade
de resposta. O homem torna-se “responsivo”, e
o indivíduo no interior das comunidades já tem a habilidade de
responder, mas de responder dentro da linguagem corrente, de responder usando
palavras e formando frases rudimentares. O indivíduo tem um nome dentro de
sua coletividade, e a esse nome se unem valores e narrativas de sua vida, que
são repartidas por seu grupo. Não são apenas os objetos de distinção
individual. O ser humano torna-se sujeito, passa a protagonizar a sua história
na comunidade, e esta é a conseqüência maior do ser consciente. Passa a ter
responsabilidade por si mesmo e pelos seus semelhantes, em gradações
distintas, segundo os laços sociais e as afinidades ou rivalidades que se
definem.
11.
Desde esse período inicial da vida humana, porém, os indivíduos nascem
sempre no interior de uma comunidade organizada. A essência da vida humana é
o ser social, os grupos de referência que sustentam a existência e o
desenvolvimento dos indivíduos, agora mediados por formas culturais mais
complexas. Para se tornar sujeito, o indivíduo deve assumir as identidades de
seu grupo, nos níveis familiares e coletivos, nas classificações ativas
dessa cultura, como por exemplo, os “meninos” e as “meninas”, os
“mais velhos”, os “guerreiros”, etc., e da mesma forma destacam-se funções
especiais de liderança e da ritualística tribal. O indivíduo só se faz
sujeito através do material psíquico, e este se forma
a partir dos signos lingüísticos, nas situações enunciativas, ou
seja na interação verbal, nos usos da linguagem falada tanto no diálogo com
os outros quanto no diálogo consigo mesmo. O indivíduo deve “entrar em
cena”, e faz isso pelo diálogo. Este processo de constituição do
sujeito indica que a identidade individual é primeiro social, isto é, cada
um dos falantes deve antes participar do diálogo social, para depois formar a
própria individualidade. Desta
forma, não é a soma dos indivíduos que faz o tecido social, mas sim os
desdobramentos do tecido social que constituem os indivíduos, sem que estes
possam jamais romper completamente as bases de sua coletividade. Sempre serão
integrantes de uma comunidade, mesmo que fisicamente, afetivamente ou
ideologicamente se distanciem, nunca poderão romper totalmente com ela, a não
ser que se alienem do mundo, pois esta é parte da substância que os fez como
tais.
12.
Os indivíduos esboçaram as primeiras falas já as submetendo a diversos
grupos e setores comunitários, dividindo sua expressão com a deles, para que
pequenos códigos comuns se desenvolvessem, de comum acordo, não sem
resguardar os campos de confrontação em toda a significação. Outros
membros desse grupo foram-se filiando a essa forma de expressão verbal, lançando
as bases de uma linguagem comum, seguindo tendências mais ou menos análogas
na constituição das línguas, pequenas divisões estruturais nas suas leis
de formação e no seu funcionamento gramatical. Há portanto certa
universalidade “próxima” tanto na tendência para falar quanto nas leis
que regem a formação dos códigos lingüísticos. Eles obviamente diferem,
mas não podem deixar de compor determinados sistemas vocabulares e de variações,
ou de composição de sentidos. Nenhuma língua é igual à outra, e, dentro
de cada comunidade, ninguém usa o mesmo sistema lingüístico de forma
totalmente idêntica, mas o faz conferindo à linguagem os seus tons pessoais,
os valores de sua experiência, os referentes de sua trajetória pessoal, os
aspectos singulares de sua mente, seu estilo pessoal, sintetizando ou realçando
detalhes de sua consciência e identidade a cada instante de sua enunciação,
carregando sua fala com um sem número de significações, armazenadas em vários
níveis de sua memória, ao mesmo tempo mediando todos esses feixes de
sentidos no momento presente, através de uma extraordinária capacidade de
processamento cerebral, dando-lhes as direções necessárias a cada momento.
E tudo isso continua a ser constantemente confrontado com o falar dos outros,
por sua vez filiados a essa mesma rede discursiva, quer dizer, todo o ser
individual continua a ser definido e atualizado nos campos sociais, inclusive
a sua fala exterior ou interior.
13.
A fala não vai mais se desenvolvendo apenas por si mesma, de forma inercial
ou pelo puro uso sistêmico, mas passa a ser estimulada pela necessidade de
desenvolvimento da consciência e da cultura, pois os diálogos se ampliam, e
com elas a curiosidade, as angústias e as necessidades de aprendizado e
compreensão, fazendo com que novos níveis de expressão sejam atingidos,
desdobrando-se e ramificando-se as operações de significação, a
complexidade da própria linguagem (gestual, pictórica, sinais, etc.)
agora permeada pelas palavras, fazendo com que o cérebro humano aumente ainda
mais a sua capacidade. Formam-se os diálogos estratégicos, políticos e técnicos,
mas também se aprofundam e se pluralizam as nuances dos diálogos íntimos
nas famílias, as formas de reflexão interior, os diálogos de prospecção
do mundo, de divagação sobre as coisas, os diálogos públicos e coletivos,
os diálogos de especulação sobre a existência, e assim surgem a religião
formal, os rituais e os mitos.
14.
A compreensão humana vai ficando cada vez mais sofisticada, dos dados e
informações significativos vão-se desdobrando e se diferenciando cada vez
mais, mas isto também se reflete no cenário cultural. As técnicas e seus
objetos estão sendo aprimorados. As formas de trabalho especializam-se em
grau crescente. Detalhes são acrescentados nas diversas atividades, os
projetos tornam-se maiores e mais bem definidos, a capacidade de planejar e de
controlar os fatos é incrementada por sistemas de referenciais cada vez mais
precisos, todo o campo de operações humanas se expande junto com as projeções
discursivas. Os hábitos sociais se transformam, e com eles os rituais,
festividades e formas de reunião. Todos querem se conhecer e contar suas
experiências, uns para os outros, e com isso as funções coletivas se
especializam e se tornam mais complexas, entre elas a política e os
planos da comunidade. Aventuram-se em distâncias maiores, encontram
outros grupamentos humanos, alguns hostis, constroem-se as primeiras grandes
narrativas dos povos, nascem as lendas, as fábulas, os mitos e mais tarde os
textos épicos.
15.
A vida psíquica complica-se. Os conflitos psicológicos multiplicam-se no
interior das comunidades e o desenvolvimento das crianças e dos jovens vai
ficando cada vez mais complicado. Seu crescimento e maturação exige esforços
e envolve volumes de informação cada vez maiores. O homem desenvolve um diálogo
interior cada vez mais rico e passa a sondar sua própria natureza, sua existência,
desenvolve sentimentos místicos, formas faladas de ligação com a natureza,
com os astros, deseja explicar os fenômenos que observa e, a partir desse
ponto, as culturas passam a se distanciar muito umas das outras. As culturas
desenvolvem-se de acordo com a tradição de cada povo, mas são diferenciadas
também pelas regiões geográficas. Cresce o nativismo, o sentimento da
terra, o “pertencimento” ao mundo, arraigando também as diversas
culturas. São essas as bases de um desenvolvimento maior, ou de uma
estabilização relativa de vários estágios do conhecimento. Pode-se
ilustrar isso pelas diferenças das culturas indígenas em todo o continente
americano, de Norte a Sul, ou mesmo no território bem mais circunscrito do
Oriente Próximo, berço das grandes civilizações da Antiguidade, entre o
Egito e a Mesopotâmia. Mas notável é a diferença que seguem as culturas
cuja reflexão se volta para o diálogo, buscando formas meticulosas e
criteriosas de expressão. Todas desenvolvem conhecimentos notáveis, diversas
técnicas, mas o conhecimento sistemático, a Ciência, irá brotar apenas
nessas culturas que formalizam a fala em escrita, e a escrita em argumentação
racional. Dentre essas, algumas atingem estágios avançados na política, na
religião e na economia, desenvolvem a poesia e os primeiros cálculos
formais, criando símbolos que vão formar os diversos alfabetos. Contudo,
mesmo que várias correntes científicas atuais questionem isso, a origem do
pensamento sistemático, filosófico-científico, se dá na Grécia Clássica,
nas várias correntes filosóficas que se formam, destacando-se Sócrates,
Platão e Aristóteles, entre tantos pensadores incomparáveis a seu modo,
como Pitágoras e os pré-socráticos. Todos eles dão um passo adiante nas
explicações mitológicas da cultura, procurando deduzir de outras reflexões
a essência do saber, a própria razão, dentro da consciência, imersa no
discurso. Mas vale observar que não é apenas o nascimento da Filosofia
Ocidental que fornece os instrumentos para o desenvolvimento científico, que
irá caminhando dificultosamente durante os séculos, finalmente se acentuando
após o Renascimento. O pensamento sistemático é um desdobramento de outras
formas discursivas, ele necessita dos outros modos de reflexão, é isto
basicamente o que é a postura filosófica, um diálogo entre formas distintas
de conhecer as coisas, as próprias culturas e também os sujeitos que nelas
vertem seus enunciados. A sistematização é um discurso criativo e
elaborado, que só adquire sentido ao explorar toda a base cultural pré-existente.
Os textos religiosos, a arte e a literatura, os diálogos do cotidiano, as
formações anteriormente estabelecidas na tradição, é esta a produção
cultural requerida, para que sejam confrontadas e delas se extraiam as bases
da razão técnica e científica, e este é um processo que durou quase dois
mil anos. Outras linhas filosóficas se desenvolveram e são igualmente
essenciais à natureza humana, nas culturas indígenas, nos povos orientais, e
esses também valorizam aspectos ou propriedades específicas das palavras. O
impacto dos rituais mágicos, a força mental liberada pela concentração
cerebral ou a força espiritual das orações, são fenômenos pouco
compreendidos pela razão ocidental, mas continuam a desempenhar um papel
fundamental para a vida humana. Permeando todo esse desenvolvimento cultural
está a atividade semiótica-ideológica da linguagem e as dinâmicas de
interação social dialogada.
16.
Quando os pequenos grupos humanos começaram a se reunir para conversar,
durante as tarefas do dia, talvez em volta das fogueiras à noite, alguns fenômenos
lingüísticos e sociológicos passaram a ocorrer. A curiosidade em torno das
experiências, o gosto pelas narrativas, a performance verbal nos debates
mudando os pesos da influência grupal, a descoberta dos perfis de cada um, de
suas preferências, opiniões, de suas características marcantes, as interações
verbais passaram a alterar todo o conjuntos de valores do grupo. Passaram a
apreciar as coisas de outra forma, influenciados pelo discurso. O valor dos
indivíduos foi no decorrer dos séculos se transformando, ou se desdobrando
das funções primordiais de subsistência e reprodução. Uma vez mais se
deve ressalvar que essas formas ancestrais não estão ausentes do homem
contemporâneo, mas atualmente se inserem em contextos mais amplos, em que
novas alternativas se apresentam.
17.
O organismo não desiste de si mesmo. A fome reclama da mesma forma, todos os
dias, não importa se agora o homem humanizou-se e está a caminho da civilização.
Entretanto, essa sensação básica de subsistência agora tem um nome, a
fome, e pode ser modulada pelo diálogo externo ou interior. Passou a ser um
ato a ser decidido dentro da linguagem, não obstante tenha a mesma origem física-biológica
(fisiológica). O indivíduo tem ferramentas mentais para ponderar de
diversas maneiras como irá atender às necessidades de seu corpo. Certamente
irá propor alternativas a todo o seu grupo, para que decidam o que fazer a
esse respeito. Podem esperar ou antecipar a própria fome, e isto indica um controle maior do tempo, que se manifesta de outras
maneiras. Podem armazenar alimentos, checar os estoques, projetar o
eventual sucesso ou fracasso das caçadas, da pesca e das colheitas. Os indivíduos
incumbidos de preparar a comida podem conversar entre si, para descobrir a
melhor forma de dividir e guardar os alimentos, e de prepará-los.
Desenvolve-se a culinária rudimentar. Experiências passam a ser feitas. Várias
ervas, raízes, combinações, cozimento, certamente os primeiros utensílios
se quebram, mas logo descobrem formas de tornar o barro mais resistente, se
devidamente cozidos perto do fogo. O fogo e a fala tornam-se os laboratórios
“de ponta” durante milênios. Mas os diálogos podem ser usados em todas
as situações, estão presentes em tudo agora, a palavra torna-se ubíqua,
isto é, está em todos os lugares. Tudo que o homem concebe, o faz através
de uma palavra. Para que ele compreenda ou procure compreender as estrelas,
agora ela precisa de um nome, de predicados, de análises, de questionamentos.
Se há uma luz no céu, então é necessário que haja como reflexo lingüístico
desse pensamento a própria frase, “uma luz no céu”. Esta é a produção
semiótica-ideológica organizando toda a sociedade através das “situações
enunciativas”, a interação verbal ou mesmo as vozes soando no
“interior” de cada um. Bakhtin reiteradamente chamou a atenção para o
fato de que esse “interior” individual é na verdade campo sociológico,
relação social.
18.
O que ocorre quando as pessoas começam a falar correntemente, quando o
discurso passa a ser a característica distintiva da espécie, em último
grau, e a atividade constante de dar sentidos ao falar passa a ser o trabalho
coletivo básico? Primeiro, o homem passa a caminhar apenas pelas rotas
“faladas”, ele segue os caminhos de seu discurso, não pode mais pisar
fora dele; segundo, todas as coisas passam a ser organizadas em sistemas
formais de valor. Têm início as formas proto-econômicas e os primeiros
sistemas ideológicos completos. A linguagem nasce integrando o homem em suas
esferas de existência e projetando essa existência para além dos limites lógico-instintivos,
através dos signos. Os valores nascem da confrontação ininterrupta de
diversas possibilidades e opções: a orientação espacial, os gestos,
movimentos, deslocamentos, as ações e reflexões, a memória, a divagação
prospectiva, a interação imediata, a ordenação das atividades, os
detalhes, todas elas são submetidas a apreciação umas na presença das
outras, sempre por meio do diálogo, medindo e classificando toda a experiência
sensível, “banhando-a em palavras”, como diria Bakhtin. O diálogo não
cessa mesmo na solidão, quando passam a ecoar com maior clareza e intensidade
as vozes do diálogo interior, a “vida interior”, como parte do processo
de vivificação da personalidade individual integrada. E a todos os pontos
dessa operação semiótica-ideológica associam-se pesos, cargas, análises,
preferências, distinções, filiações, atitudes, imagens, formações sígnicas
que na verdade são correntes no discurso e se apresentam de forma natural no
jogo social. Ao longo da experiência coletiva e individual, refinam-se essas
habilidades de percepção e diferenciação, mas estas também se podem
entorpecer e turvar, estagnar em vez de se desenvolverem, e mesmo sofrer
atrofias. Isto acontece tanto nos grupos quanto no âmbito da cultura, e
sucede também entre os indivíduos, segundo sua trajetória pessoal. Em casos
extremos, podem levar à neurose e à alienação, à redução e
empobrecimento da personalidade e da comunidade, em ocorrências normais
representam as inclinações e vocações, as tendências e escolhas feitas,
assim como as ocorrências acidentais e a experiência do novo ou dos
aprendizados.
19.
Com o progresso da linguagem, as palavras passam a coroar e destituir os reis,
a reverenciá-los ou rejeitá-los, e esse passa a ser um dos processos vitais
da sociedade, além da constituição dos sujeitos e da divisão do trabalho.
O estudo dialógico levou Bakhtin ao encontro das formas carnavalizadas, às
festas populares, ao destronamento da autoridade e ao coroamento temporário
de outras, válidas apenas nesses eventos. A autoridade popular na praça, a
autoridade cômica do carnaval, os mestres de cerimônia, as personagens
incorporadas nos rituais, a representação na arte e as personagens na ficção, tudo contrastando
com a estrutura formal de poder, com a divisão exata dos valores, com o rigor
das funções. Toda essa margem social de variações e estabilidade é
mantida pela flexibilidade de valor das palavras, pelo processo vivo de
significação, conferindo pesos únicos a cada enunciação. Mas, além dos
reis, outras funções destacadas na comunidade são definidas pelo jogo
discursivo. Todos os confrontos
entre os sujeitos, os grupos, as idéias, digladiam-se no discurso, em todas
os momentos da interação verbal.
20.
Além das formações discursivas que se articulam, dos diversos gêneros
discursivos circulando nos vários campos sociais, dos riquíssimos aspectos
sistêmicos da língua, por exemplo as línguas novilatinas derivando-se do
latim, e antes disso outras derivações, ou as variantes lingüistas que hoje
se verificam nas regiões de um país, nos bairros das grandes cidades, o
falar das crianças, jovens, adultos e idosos, toda essa diversidade riquíssima
marcada igualmente pela distinção dos sujeitos, na forma que falam e
gesticulam, ou como se expressam e usam o olhar, o diálogo íntimo dos pais
com seus filhos, entre os amantes, nos laços das amizades, além de toda a
exuberância a que chegaram as redes dialógicas, especialmente após o
surgimento dos livros, da imprensa, das escolas e dos meios de comunicação
de massa, da multiplicação das artes, na sociedade pós-industrial, há a
história dos dias.
21.
Cada episódio da vida em sociedade, cada um dos dias vividos, os anos, as épocas,
cada uma das construções humanas e também o ambiente natural, têm a sua
história guardada, os seus arquivos, documentos e monumentos. Qual seria a
história da fala de hoje? Se fosse possível reunir todos os discursos... Mas
eles podem ser resgatados ou reunidos a qualquer momento. Hoje se reconstrói
parte do discurso de milhões de anos passados, ou de bilhões de anos do
planeta, do universo e suas galáxias. Buscam-se as suas leis de formação,
princípios que nortearam fenômenos ocorridos antes da Terra existir. Ou que
ocorrerão milhões de anos após a extinção da espécie humana na Terra. De
outro lado, no microcosmo das comunidades, famílias e indivíduos, o discurso
está também expresso ou subjacente, circulando desde os tempos imemoriais e
projetando-se na eternidade. Podem-se recordar várias coisas, outras vivem
sob nossa observação imediata e têm certa duração, a sensação do tempo
passando. Contudo, mesmo que fosse possível juntar num único arquivo todas as
falas de um único dia, todos os discursos significativos circulando pelo
planeta nessa data, ainda assim não haveria uma história da fala, por si
só, pois o diálogo é um universo inacabado, ou seja, a fala se confunde com
a própria vida em movimento, e o processo discursivo com a própria
vivificação. Bakhtin mais uma vez deixou sua marca neste percurso, ao dizer
que a vida só começa quando uma enunciação encontra a outra. A vida seria
o “grande diálogo”. Embora existente, infinito e onipresente, esse “arquivo do dia”,
a história da fala, só se torna efetivo quando vivificado pelo diálogo
objetivo de uma consciência, ou de várias consciências em debate, quando a
disciplina é examinada. Essa linha argumentativa pode-se fechar traçando um
círculo esquemático. De modo metafórico ou não, vários projetos de
pesquisa avançada desde o final do século 20 têm procurado (re) encontrar
Deus na extremidade final de alguma corrente disciplinar. Na Genética,
no estudo molecular, na nanotecnologia, no avanço dos cérebros cibernéticos,
na Cosmologia e em outros campos. Stephan Hawking foi um desses grandes
cientistas que formalmente declarou isto, nos seus relatórios de estudo sobre
o universo. Einstein era outro que regularmente apoiava-se na religião e em
Deus para estabelecer os parâmetros de algumas de suas afirmações científicas.
Na linguagem, então, não deveria ser diferente, dada a sua ubiqüidade e
infinitude, sua propriedade sígnica de representar, permear, ungir e formar
narrativas eternas. Se Deus estiver presente em alguma dessas outras
disciplinas, não deixará certamente de estar presente nos ecos da fala
humana, nos sons e lamentos, nas canções e estórias, em todas as redes
infinitas que se desdobram a partir do referencial de um único e simples
cidadão, de um instante singular, pois, ao articular uma única sílaba de um
sistema lingüístico, o bebê quando murmura seus primeiros monossílabos ou
dissílabos compreensíveis, na primeira fala de uma criança, o sujeito se
apresenta diante do universo e de toda a história da Criação. *** |